O conto Os mudos, escrito pelo argelino radicado na França Albert Camus (1913-1960), mostra a luta social de um grupo de canoeiros num povoado sem localização geográfica definida. Mestres de um ofício à beira da extinção, eles reivindicam melhores condições de vida sem encontrar apoio dos moradores da região. A história, através do cinema, está sendo transportada para a Ceilândia dos dias atuais. Esta obra de Camus serve de base para o curta-metragem Nós vivendo, a mais nova produção cinematográfica da Ceicine. Na trama ceilandense, o conflito se dá na tensa relação entre patrão e empregados grevistas de uma modesta serralheria da cidade. Nada mais incrível do que os trabalhadores de uma oficina de quintal fazendo greve. Assinam a direção Adirley Queiros e o paulista Tiago Mendonça, diretor de Minami em Close-up, prêmio de júri popular no último Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Na trama, os seis serralheiros da oficina não têm o menor conhecimento dos pensamentos marxistas a respeito da Luta de Classes. No entanto, ainda assim, resolvem “correr atrás” dos seus direitos objetivando o atendimento de suas reivindicações como trabalhadores. A luta está entranhada no processo fílmico mesmo, entre os atores, na perspectiva de câmera, e também na estética da produção. A tentativa é a de fugir da idealização desses sujeitos mas sem paternalismos.
Vários atores amadores há um ano e meio têm participado de uma oficina de arte dramática encabeçada pelo veterano dos palcos brasilienses, o ator e diretor Humberto Pedrancini que também atua no filme como Batista, dono da serralheria onde trabalham os insurgentes e Wellington Abreu, da companhia Hierofante. Esta é a chance de a jardineira Antônia Maria dos Santos, 48 anos, moradora de Santo Antônio do Descoberto (GO), realizar um sonho de criança. Equilibrando-se entre o emprego de doméstica e o de vendedora de doces, com alguma experiência dramática acumulada em montagens do grupo de teatro de Plínio Moska, ela encarna o primeiro papel no cinema como Marta, dona do quiosque onde os serralheiros se encontram para discutir os problemas do emprego e a sua pauta de reivindicações. Entregue de corpo e alma ao papel, Antônia até varria o chão do lugar mesmo fora dos momentos de gravação. Welhington Abreu, vive o personagem Assis, um dos mais importantes da fita. Assis é o personagem em torno do qual gira boa parte da trama. Assis é também um sujeito de pouca conversa. Vive angustiado pela nova situação caseira em que a esposa, a manicure Sílvia (personagem de Marlete Fernandes) tem de assumir o orçamento doméstico prejudicado pela intransigência do patrão do seu esposo e que motivou a greve.
A produção ceilandense é a primeira em película 16mm planejada para transfer em 35, mistura sem distinção, técnicos amadores da Ceicine e profissionais experientes em produções locais como Chico Craesmeyer (som), Adriana de Andrade (continuidade) e o diretor de fotografia André Carvalheira, o Xará. Este último achou apropriado um experimento fotográfico fortemente baseado em manipulação de pós-produção o que já vinha planejando a há algum tempo desde conversa o fotógrafo brasileiro César Charlone. Em set, a fotografia, trabalhada com o mínimo de equipamentos, é pensada para receber dessaturação das cores e grãos maiores que o habitual, dando a impressão de uma película “suja”. Foi desejado também sugerir referências do metal com que trabalham os serralheiros.
Ceilândia aparece muito mais como uma personagem do que como cenário. É representada em sequências poéticas dos personagens praticamente forçados a reencontrar a cidade por meio do ócio causado pela paralisação. É usada a metáfora da Ceilândia moderna com metrô, tendência à verticalização, especulação imobiliária e assepsia da paisagem urbana. O curta, com duração planejada para 18 minutos, foi financiado com recursos do Fundo de Apoio a Cultura (FAC) e do Ministério da Cultura e contou com orçamento de produção de R$ 140 mil.
1 – CEICINE – Fundada em 2006, a produtora ceilandense se dedica a produzir filmes e videoclipes de artistas da Ceilândia. Nós vivendo é o terceiro filme do grupo. Os dois anteriores são o curta-metragem Rap, o canto da Ceilândia (vencedor de melhor curta-metragem 35mm do 35º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro) e o longa Fora de Campo, feito com recursos do concurso DocTV, da EBC. Baseado na história real do diretor Adirley, que chegou a atuar como jogador de futebol na juventude, acompanha a trajetória de seis jogadores profissionais do DF. Na prática, a Ceicine funciona também como um grupo de discussão sobre imagem e periferia.
Há de se ressaltar aqui, a forte veia artística da Ceilândia. Vários dos diversos artistas musicais do DF, que tocam do forró passando pela MPB até o Rock, são moradores da satélite. Como também uma boa parte dos poetas e Artistas Plásticos do DF. Alguns dos principais movimentos culturais de Brasília, são de lá. Entretanto, por equívoco do GDF e principalmente da Secretaria de Cultura do Distrito Federal, a satélite não possui um teatro sequer. O mesmo posso dizer de salas de cinema. O comércio é variado. Entretanto, é como dizem os Titãns: “A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte.” Fica a pergunta: Como pode uma cidade satélite com tanto talento para a arte e a cultura e com uma noite com boas opções de lazer em termos de barzinhos, não ter a devida atenção do governo no que diz respeito a essas outras formas de cultura?
2 – Albert Camus – Nascido em uma família pobre na Argélia, o escritor e filósofo sofreu angustiantemente por ter continuado os estudos ao invés de trabalhar para ajudar no orçamento familiar. Morou e estudou durante anos turbulentos em Paris, por algum tempo separado da esposa e dos filhos por causa da Segunda Guerra Mundial. Com uma biografia assim, carregada de preconceitos, Camus fixou-se em personagens marginalizados tanto pela origem quanto pela classe social. Recebeu o Prêmio Nobel de literatura em 1957. Três anos depois, morreu em um acidente de carro na França.
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